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Depoimentos

Os professores Elisa de Souza Martinez e Vicente Martinez, do Instituto de Artes da Universidade de Brasília, durante uma viagem de turismo a Pirenópolis (GO), em 1983, conheceram alguns trabalhos de Safia, nascida Celestina Teixeira Siqueira. Naquele tempo, praticamente desconhecida como escultora, Safia dedicava-se a diversas atividades para custeio de sua sobrevivência, ficando suas esculturas abandonadas no fundo do quintal de sua casa.

Observando de imediato a genialidade daquela escultora, os professores Vicente e Elisa fotografaram suas peças e mostraram algumas para o colega João Evangelista de Andrade Filho , professor na UnB e diretor do Museu de Arte de Brasília, que posteriormente foi diretor do Museu de Arte de Santa Catarina.

Interessado em conhecer o trabalho de Safia, João Evangelista formou um grupo de pessoas, do qual participei e fomos para Pirenópolis. Todos se apaixonaram pela beleza das esculturas e pela personalidade cativante da artista.

Em 1985, João Evangelista de Andrade Filho realizou uma grande exposição de arte popular no Museu de Arte de Brasília, onde o trabalho de Safia foi apresentado ao público pela primeira vez. Acompanhei desde então a vida de Safia.

Mesmo não sendo produtor cultural e tendo na época minha agenda profissional totalmente ocupada, pude fazer uma grande exposição do trabalho da Safia na Galeria de Arte Athos Bulcão, da Fundação Cultural do Distrito Federal. Realizei  ainda outras quatro amostras menores, com catálogos, folhetos e ampla divulgação na mídia local, apenas com o  apoio da cessão dos espaços.

Com o passar do tempo, muitos apreciadores de arte reconheceram a genialidade da artista.Agora, décadas depois, tendo armazenado muitas informações sobre esta excepcional escultora e pintora, registro na internet esta coletânea de dados e acervo de obras da artista. 

Eduardo Nogueira da Gama

SAFIA DE PIRENÓPOLIS

Ninguém saberá por que motivo um jarro do rio Sapik, na Nova Guiné, se aproximaria tanto de uma peça de Tota, o artista nascido em Tracunhaém. Ninguém explicará a afinidade do vaso canópio etrusco com a moringa antropomórfica do Vale do Jequitinhonha. Quem esclarecerá o parentesco entre os bonecos ali moldados e as figuras Palaikastro, feitas entre 1.400 e 1.100 anos antes de Cristo? Ou as analogias entre figurinhas do Nordeste e as Tarascan , os sítios arqueológicos pré-colombiano? Ninguém nos dirá, enfim, por que motivo um grupo de ‘’têtes coupées’’, feito pra um escultor celta há 2.600 anos, vem encontrar sua réplica nas cabeças agrupadas pelo escultor baiano de Cachoeira, o Louco. Por isso, se alguém se espantar ao reconhecer, nas figuras da ceramista Safia, ecos das terracotas de Tanagra, ou da porcelana de Meissen, Chelsea, de Nymphoenburg e, sobretudo, de Vinceannes, deve seguir adiante sem arguir mais razões, pelo menos por enquanto. Como diz o conselho popular, relaxe e frua, e nem pergunte, também, por que é que só no caso da arte genuinamente popular essas aproximações são idôneas.

 

Para quem não sabe, Safia é uma senhora de 56 anos, que mora num casebre muito pobre na subida de um morro na cidade de Pirenópolis. Apesar de estar ligado há vinte e três anos a essa cidade, foi só na semana passada que, por indicação de Elisa e Vicente Martinez, fui conhecer Safia. Merecendo figurar como irmã menor de Cora Coralina, Safia é hoje pouco mais que uma desconhecida. Temos de coloca-la ao lado de Antônio Poteiro, como outro extraordinário (ainda que diverso) de arte ínsita do Estado de Goiás.

 

Um historiador de arte, desses que vem a história como um mar de dados a classificar, colocaria a obra de Safia no capitulo intitulado classicismo. Mas teria uma certa dificuldade nisso, porquanto a obra de Safia é complexa e, se não fosse feita por quem foi (uma personalidade quinta essencial da alma popular goiana), poderia passar por obra de gosto duvidoso. Pelo menos para o apressado olhar do critico burguês. Precisamos nos lembrar, porém, que as coisas que beiram o kitsch, tangenciam o kitsch, mas escapam do kitsch, são extraordinárias e valeu como tal. É aquela história: põe-se, no meio da interpretação, o imponderável que dilui as fáceis rotulações, e assim as distâncias e proximidades se medem na ordem geométrica, não na artística. Nesta, abismos podem ser poetas e pontos abismos. Então, as cerâmicas de Safia são um manancial de resvaladiços momentos de formosura, difíceis de enquadrar-se em grupos temáticos, pois tudo a interessa e a chama, desde o cavalo e o trem de ferro (um de seus mitos) até os casais que trocam galantezas: lordes de folhetim e heroínas suspirosas nos garbos e posturas, demais saídas de alguns rotulo de perfume antigo. Quanto à forma, contudo, não lhe assenta mal o classicismo. Um classicismo que alcança Falconet, mas vias Goiás, via velhos figurinos nunca folheados, via estandes de bibelôs cujo donaire sua vida calosa, tosca, nua, rude e até brutal nunca deixou contemplar. E surgem os putti do Quatrocento, Venus deitadas com seu filho Cupico subindo-lhe pelas costas, certinho como no quadro de Palma Vecchio, que ela nunca viu; surgem os moleques, ambíguos porque tanto podiam ser encontrados numa escavação de Herculano, em forma de pequeno bronze, quanto simplesmente ser inspirados pela meninada do lugar, soberana nos naturais gracejos e safadezas. Alheia, forasteira, extrínseca, longuínqua, rara w fora de lugar ou de tempo ou, pelo contrário, tradutora fiel das envolturas locais? Para que definir ao certo? O encanto de Safia reside nisso, nessa fluidez que não se deixa apanhar, na passagem do cotidiano às galas do novelesco. Filigranas e sutis vernizes; lindezas anatômicas com jugos e alianças perfeitas, inacreditáveis proporções que jamais se desajustam; peles e camisas, flutuações epidérmicas valendo-desvalendo o erotismo. Églogas de banhistas do rio da cidade, com seus biquínis e calções; os bigodes bonitos de cobrador de ônibus que também fugiu de um certo cartão postal; graças elipsóides de Ganimedes em pêlo; tropas, bailes, cavalhadas, a folia dos animais. E personagens cúmplices de veladas memórias, sócias de recordações inrrecordadas. O cavalo não é cavalo, mas corcel; a velha caipira acionando o seu moinho de café, essa já não é mulher, é senhora, dama. A comunicabilidade de Safia não conhece limites. Do erótico-escatológico à jovialidades e cortesias, dos atavios e etiquetas, nem sempre pintados no barro com o cuidado que mereciam; dos ademanes aos puros gestos, em tudo Safia coloca seu amável discurso, que não é discurso de palavras, é claro, mas plástica que subentende em cada objeto uma história. A rusticidade dessa mulher, isolada em seu casebre, seu senso natural que lhe faz compreender que é mais religioso ir buscar leite para os dois netinhos, que vivem com ela, do que ir à missa como todo mundo, sua vida simples e direta, escondem uma requintada sensibilidade. Safia é uma aristocrata de forma como um bom escultor erudito do século passado, e tem a vantagem de entender o seu lugar e seu momento num modo que só o povo pode fazer. Ninguém deve monopolizar sua obra ou paternizá-la. Isso seria grave numa cidade que já vai sendo ‘’adotada’’ por hippies fora de época e turistas proprietários, que conservam a arquitetura colonial, mas talvez descaracterizem a vida do lugar. Eu disse talvez porque isso merece discussão à parte. De qualquer modo, o que temos que fazer com Safia é admirá-la, comprar suas obras por preço condigno. Ir vê-la em seu lugar, o lugar onde impera como a dama dos folhetins de barro.

 

João Envangelista

Texto para o catálogo da exposição “A Visão Popular da Realidade”, realizada no Museu de Arte de Brasília

Safia, a escultora de Pirenópolis

No feriado de 15 de novembro de 1983 fomos pela primeira vez a Pirenópolis. Naquela época, a viagem durava quatro horas. O ônibus partia da Rodoferroviária de Brasília e percorria metade do trecho em estrada asfaltada até Cocalzinho. Neste pequeno povoado, à beira da estrada, o ônibus parava antes de percorrer a segunda parte do trajeto em estrada de terra. Muita terra, muita poeira antes de chegar à Pirenópolis no início da noite. O único restaurante abria apenas para almoço e o Hotel Rex, em frente à praça, não fornecia refeição além do café da manhã. Em véspera de eleição, e com a disposição típica da juventude, aceitamos a sugestão de uma amável senhora que nos conduziu a uma das casas em que os políticos locais mantinham refeitórios ininterruptamente abertos a prováveis eleitores. Talvez Arena, talvez MDB.

 

O movimento de turistas em Pirenópolis se concentrava na época das Cavalhadas, quando os visitantes se espalhavam pela cidade de maneira espontânea e desordenada. Alguns acampavam à beira do Rio das Almas, onde moradores lavavam roupa e cavalos bebiam água. Em novembro, fora da estação turística, apreciava-se o conjunto arquitetônico daquela pacata cidadezinha colonial do interior de Goiás. As cachoeiras eram quase desertas.

 

Neste cenário, de uma vida muito diferente da que caracteriza Pirenópolis hoje, saímos no dia seguinte para explorar a cidade. Encontramos, na rua principal, próxima ao Rex, um local administrado pela prefeitura em que se vendia um artesanato que não era muito diferente do que se encontrava na Feira da Torre de TV em Brasília, com exceção dos doces e licores caseiros. Em busca de alguma novidade, olhamos atentamente as prateleiras e avistamos, ao fundo, quase escondidas, algumas figuras que nos pareceram destoar do conjunto de mercadorias à venda.  Perguntamos sobre o/a autor/a, e nos responderam, surpresos com nosso interesse, que eram de “Safia”. Quisemos saber onde poderíamos encontrá-la e nos responderam com informações vagas. Depois de muita insistência, disseram-nos que ela morava ao final de uma rua próxima dali. Em tal rua, perguntamos por Safia a várias pessoas até que alguém nos disse que ela não morava naquela rua, mas sim em outra quase fora da cidade, sem calçamento. De tanto perguntar chegamos à rua de Safia, mas não encontramos sua casa. Uma moradora nos informou, finalmente, que Safia morava “naquela” casa esquisita que, vista da rua, era apenas um muro verde.

 

Quando Safia nos recebeu, desconfiada e alegre, nos explicou que havia construído sua casa sem janelas na fachada da frente porque não queria fofoca de vizinho. Morava com dois netos. Entrar no universo de Safia, em sua casa, era sentir-se íntimo. Ela abria, com pureza e generosidade, suas lembranças e as imagens que povoavam sua obra. Além das figuras de argila, ela também escrevia muito e as imagens, que transitavam entre formas plásticas e literárias, eram compartilhadas com honestidade e encantamento. Era vivaz, inteligente, sensível e divertida. Ela era a pessoa mais encantada por seu próprio trabalho e ouvi-la nos aproximava mais de suas memórias da vida na roça, do pai carinhoso e da menina sonhadora que brincava com barro na beira do rio. As histórias jorravam de sua imaginação e suas palavras surpreendiam porque não podíamos associá-las a um aprendizado formal. Descrevia um mundo de sensações e histórias que não pareciam ser condizentes com a austeridade e a simplicidade de suas condições materiais. No quintal atrás de sua casa, além de produzir figuras de barro cultivava mudas de plantas para vender.

 

A partir dessa viagem, visitávamos Safia sempre que viajávamos a Pirenópolis. Desde a primeiro contato, comprávamos suas peças apenas na sua casa e fotografamos outras que não conseguimos comprar. Em 1985 apresentamos o trabalho de Safia ao historiador e crítico de arte João Evangelista de Andrade Filho, então curador do recém inaugurado Museu de Arte de Brasília (MAB), que organizava a exposição “A visão popular da realidade – o perfil do colecionador”. João Evangelista se encantou com Safia e seu trabalho, influenciando outras pessoas a comprarem suas peças de barro.

 

Entre os colecionadores de Safia encontram-se Eduardo Gama, quem nos pediu que escrevêssemos este registro de nosso primeiro encontro com Safia, e Marcia Lima Nogueira. Suas coleções são primorosas e abrangem o que Safia produziu no decorrer de trinta e cinco anos. A oportunidade de conhecer melhor o trabalho de Safia por meio de um acervo digitalizado é de grande valor para todos nós que apreciamos seu trabalho e, também, para que a admiração que temos por ela possa ser compartilhada com aqueles que ainda não a conhecem.

 

Este relato é, para nós, mais uma homenagem à artista que admiramos.

 

 

Brasília, 17 de novembro de 2021.

 

Elisa de Souza Martínez

Vicente Martínez

Depoimentos do artista gráfico, ilustrador e professor Fernando Lopes, grande apreciador e amigo de Safia.

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Vídeo produzido por Frederico de Holanda, arquiteto e professor da Universidade de Brasília, contendo depoimentos de admiradores do trabalho de Safia.

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